Eu Não Posso Descer





Eu Não Posso Descer

(Alegoria baseada no livro de Neemias)

Havia um jovem chamado Bento, que morava nas ruínas de uma cidade antiga.
Não se lembrava bem de quando tudo havia começado a desabar. Só sabia que, ao seu redor, os muros tinham caído, as portas estavam queimadas e, dentro das ruas da sua alma, o silêncio reinava. A cidade era ele mesmo, e ele sabia disso.

Certo dia, uma Voz ecoou do alto da Torre Partida, onde ninguém subia havia muito tempo:

“Há muros que precisam ser reconstruídos. E você foi chamado para levantar o que foi deixado no pó.”

Bento tremeu. Quem era ele, senão parte dos escombros?

Mas a Voz insistia. E como um copeiro humilde diante do Rei, ele respondeu:

“Se o Senhor me der forças, eu irei.”

Naquela madrugada, ele reuniu pedras esquecidas, memórias partidas, restos de fé,  e iniciou a obra. Não com cimento, mas com renúncia. Não com mãos limpas, mas com um coração quebrantado.

Mal havia assentado os primeiros blocos, surgiram os Zombadores.
Zombaria, o zombador de olhos estreitos, riu alto do alto de uma torre caída:

“Você? Um reconstrutor? Uma raposa derrubaria esse muro!”
 

Desprezo, seu irmão, cruzou os braços e sussurrou entre dentes:

“Nada do que você faz é digno. Volte para o pó de onde veio.”

Mas Bento firmou os pés na terra e respondeu:

“O Arquiteto dos Céus me deu o projeto. E Ele mesmo fará prosperar a obra.”
 

Então vieram os Convites.
Diplomacia, um homem vestido com roupas finas e voz suave, o chamou para um encontro no Vale de Ono:

Desça só por um instante. Vamos dialogar. Negociar. Ser razoável.”

Mas o convite escondia espadas por trás do sorriso. E Bento discerniu:

“Estou fazendo uma grande obra. E não posso descer.”

(Porque todo aquele que desce de onde Deus o colocou, caminha rumo ao esquecimento.)
 

Veio também Desânimo, disfarçado de Amigo, oferecendo sombra e descanso:

“Você já construiu o bastante. Descanse. O muro pode esperar.”

Mas Bento conhecia o veneno da pausa fora de tempo.

“Ainda há brechas. Ainda há portas por levantar. Não posso parar agora.”
 

Houve também um dia em que Inveja, vestida de irmão, espalhou rumores pela cidade:
“Ele só constrói para ser visto.”
“Quer fazer nome para si mesmo.”

Bento chorou. Não pelas palavras, mas porque vieram de dentro.

Então limpou o rosto com o lenço da perseverança e disse à Voz:

“Não permita, Senhor, que minhas mãos se cansem. Fortalece-as.”
 

Por fim, chegou Memória do Passado, uma figura delicada, com rosto conhecido, que se aproximou como quem deseja paz:

“Quero apenas conversar. Não desejo o mal. Apenas lembrar…”

Mas Bento viu, por trás dos olhos suaves, a espada oculta.

“Não posso descer,” repetiu.
“Mesmo que o convite tenha perfume de saudade, ele me afasta da Presença.”

Cinquenta e dois dias depois, os muros estavam erguidos.

A cidade ainda tinha cicatrizes, mas agora estava de pé.
 

E quando Vulnerabilidade, o antigo governante, tentou atravessar os portões, encontrou Porta da Fidelidade vigiando a entrada.

Alguém lhe perguntou:

“Como foi possível erguer tudo de novo, sendo quem você é?”

E Bento respondeu com um olhar sereno:

“Com a ajuda do Grande Arquiteto, reconstruí meus muros.” (Neemias 6.16)
 

Porque nesta jornada, há sempre um vale tentando te fazer descer.
Mas aquele que permanece firme sobre a muralha, mesmo ferido, mesmo cansado, é sustentado pelo mesmo Deus que ordenou a reconstrução.

E toda vez que o vale o chama com vozes doces, ele apenas responde:

Eu não posso descer.
 

(Na teologia bíblica, especialmente na linguagem narrativa do Antigo Testamento, yarad carrega um sentido muito mais profundo do que o mero deslocamento físico, sendo, com frequência, símbolo de queda espiritual, afastamento de Deus e abandono do propósito.)



Soraya Mahmud Abdulhamid