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Senhor, Tu ou Você? Como Falar com Deus




 

Senhor, Tu ou Você? Como Falar com Deus

 

A maneira como nos dirigimos a Deus revela o quanto O conhecemos e reverenciamos. No Antigo Testamento, ou melhor, nas Escrituras Hebraicas, essa relação entre linguagem e reverência é cuidadosamente construída por meio de títulos sagrados, expressões de temor, e um cuidado profundo com o Nome de Deus.

Em tempos modernos, em que a informalidade domina a comunicação cotidiana, muitos se perguntam se é apropriado chamar Deus de você, como se conversa com qualquer outra pessoa. Para responder a isso com propriedade, é essencial olhar não apenas para a tradição bíblica do povo de Israel, mas também para a maneira como Jesus, o Filho de Deus, se dirigia ao Pai.
 

No hebraico bíblico, o pronome ‘attah, equivalente ao tu, é utilizado em várias passagens em que fiéis se dirigem diretamente a Deus. No entanto, esse pronome não expressa informalidade, como ocorre com o você em português moderno. No mundo bíblico, não havia uma distinção gramatical entre tratamento formal e informal como existe hoje; o respeito vinha do contexto, da atitude interior e, sobretudo, dos títulos atribuídos a Deus. Por isso, vemos o uso frequente de nomes e expressões como Adonai (Senhor), Elohim (Deus), El Shaddai (Deus Todo-Poderoso), HaMelekh (o Rei) e outros, sempre apontando para a majestade e autoridade divina.

 

No Salmo 86, por exemplo, lemos: Não há entre os deuses como Tu, Senhor, ‘Ein kamokha ba‘Elohim Adonai. Aqui, mesmo utilizando o pronome Tu a reverência é mantida através do uso de Adonai, que significa Senhor, título que expressa submissão e honra. Essa estrutura é constante em textos poéticos e proféticos, nos quais mesmo os mais íntimos de Deus como Moisés, Davi ou Isaías se expressam com profunda reverência. Da mesma forma, em Isaías 6, quando o profeta tem uma visão da glória de Deus, ele exclama com temor: Meus olhos viram o Rei, o SENHOR dos Exércitos. A reação de Isaías não é de familiaridade, mas de espanto e reverência diante do Altíssimo.

 

A tradição judaica herdou essa postura e a reforçou com normas claras sobre o uso do Nome divino. O tetragrama sagrado YHWH nunca é pronunciado em voz alta. Em seu lugar, diz Adonai durante a leitura litúrgica, ou HaShem, O Nome, em contextos cotidianos. Essa substituição não é um simples costume, mas um sinal de temor diante da santidade de Deus.

 

Quando olhamos para Jesus nos Evangelhos, vemos que Ele, embora sendo o Filho unigênito de Deus, também tratava o Pai com extrema reverência. Na oração do Pai Nosso, ensinada aos discípulos, as primeiras palavras já expressam isso: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome (Mateus 6:9). Mesmo chamando Deus de Pai, um termo de intimidade, Jesus não o faz com banalidade, mas em profunda reverência. O verbo santificado mostra que, antes de qualquer súplica, a prioridade é reconhecer a santidade e a grandeza do Nome de Deus.

 

Ainda mais impactante é a oração de Jesus no Getsêmani, onde Ele diz: Abba’, Pai, tudo te é possível; passa de mim este cálice; contudo, não seja o que eu quero, mas o que tu queres (Marcos 14:36). A palavra Abba’ é uma expressão aramaica de ternura, equivalente a paizinho ou meu pai querido. Mas mesmo ao usar essa palavra íntima, Jesus submete Sua vontade à do Pai. Não há sinal algum de irreverência. Pelo contrário, vemos um equilíbrio perfeito entre amor filial e submissão absoluta.

 

Em contraste, a palavra você, embora comum hoje, carrega um tom de informalidade que pode empobrecer, no contexto devocional, a percepção de quem Deus é. Dizer você é o meu pastor soa distante da beleza e solenidade de Tu és o meu pastor, como escrito por Davi no Salmo 23. Não se trata apenas de estilo, mas de teologia: a linguagem molda nossa forma de pensar e nos posicionar diante do Sagrado.

 

Portanto, tanto as Escrituras Hebraicas quanto os Evangelhos nos ensinam que a maneira de falar com Deus deve refletir um coração reverente. Se Moisés tirou as sandálias diante da sarça ardente, se Isaías tremeu diante da glória do Santo, e se o próprio Jesus tratava o Pai com honra e submissão, também nós devemos cuidar das palavras com que nos dirigimos ao Senhor. Não é uma questão de formalismo, mas de temor santo, de reconhecimento humilde de que Ele é Deus - santo, exaltado, digno de todo louvor.

 

Soraya Mahmud Abdulhamid